Wednesday, March 15, 2006

Fernando Pessoa, Portugal e o Mostrengo

Fernando Pessoa tinha uma visão decadentista do Portugal do seu tempo. Infelizmente somos levados a crer que essa visão não se alteraria se o ilustre poeta fosse nosso contemporâneo. De facto desde a sua morte o Quinto Império permanece uma visão nevoenta e distante e o mostrengo que assombrou o homem do leme contínua entre nós. Temos um novo Cabo das Tormentas nos ventos da corrupção e da desonestidade travestida de incompetência. Afinal a competência é antes de mais uma atitude: quem se preocupa em melhorar as suas aptidões é geralmente bem sucedido se o tentar com seriedade. Para ser competente basta, portanto, ser honesto acima de tudo. Fernando Pessoa era competente e, sobretudo, tinha talento - qualidade nem sempre ao alcance de qualquer mortal mesmo que a procure com honestidade. Recordamos hoje esse mostrengo que Pessoa escreveu em estrofes de extraordinária beleza.


Fernando Pessoa por Almada Negreiros

O MOSTRENGO

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»

Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as repreendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

De Fernando Pessoa em "Mensagem"

Sunday, March 12, 2006

"Take Five" The Dave Brubeck Quartet



















De "Time Out" 1959

Paul Desmond no saxofone alto
Dave Brubeck no piano
Eugene Wright no contrabaixo
Joe Morello na bateria

Morello anuncia o ritmo e o compasso, seguem-se Brubeck e Wright e o pano sobe finalmente: Desmond entra e diz-nos coisas sopradas, irresistível nesse balanço que nos embala e seduz. Discurso melódico, elaborado, pleno de invenção e subtileza, Desmond consegue neste tema a evocação fantástica e inesperada de um universo que se encontra e se funde algures com o de J. S. Bach. Sons que dançam e que nos fazem dançar, até três como numa valsa, e mais dois passos pelo meio. Fascinante Paul !

Saturday, March 11, 2006















"Composição VIII " Wassily Kandisnsky

Monday, March 06, 2006

__Ella e os blues "St. Louis Blues"

















De "These are the Blues"
Outubro de 1963

Ella Fitzgerald
Wild Bill Davis no orgão
Roy Eldrige no trompete
Ray Brown no contrabaixo
Herb Ellis na guitarra
Gus Johnson na bateria

Ella é aqui, como noutras vezes, divina. E as palavras serão aqui, como tantas vezes, inúteis. O que dizer sobre a perfeição cantada? Ela existe no ataque a cada nota, na dicção perfeita de cada sílaba, na afinação irrepreensível, ou simplesmente na forma como usa as vogais em excursões maravilhosas ao longo da escala de um Blues. E Deus concedeu-lhe ainda uma tessitura extensíssima para tão bem fazer tudo isso. E como se não bastasse Ella tinha bom gosto, esse bom gosto que usa o talento e simultaneamente o proíbe de nos usar.

Sunday, March 05, 2006

Grateful Dead “American beauty”



Jerry Garcia

Grateful Dead
“American beauty”
1970

Uma incursão fora do Jazz. A primeira de muitas, espera-se. Afinal este blog é também de outras músicas. Voltamos à América, desta vez para recordarmos o som dos Grateful Dead em American Beauty. O som quente da Califórnia nos anos 60 e 70 na guitarra e na voz do barbudo Jerry Garcia. Canções pop e folk, doces, com um acompanhamento refinado. Bons tempos, em que a música era mais uma ideologia do que uma indústria




Pablo Picasso: " Banhistas com Barco de Brincar."

Wednesday, March 01, 2006

Vinícius de Moraes ou a música das palavras.

Recordar Stan Getz é lembrar também a Bossa Nova. Com ele Tom Jobim e claro, Vinícius de Moraes, o grande poeta que se fez letrista de canções inesquecíveis como a "Garota de Ipanema" ou "Desafinado". Hoje recordamos um dos seus sonetos. Música em palavras, apetece dizer.


















Soneto da Separação

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Vinicius de Moraes